Com o impacto devastador da Guerra do Vietnam ainda fresco na memória dos americanos, o diretor Michael Cimino buscou intensificar a experiência do conflito em seu grandioso épico O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978), onde um grupo de amigos de uma pequena cidade industrial da Pensilvânia, tem suas vidas alteradas definitivamente pela guerra. Ao longo de três atos, nós os vemos celebrando um casamento, atravessando o inferno do campo de batalha, e sofrendo para reestabelecer os laços afetivos.
Nesta cena, Stevie (John Savage) joga a roleta. É um mecanismo dramático, um jeito de demonstrar o que eu realmente considero o horror da guerra: a espera. Como se dramatiza a angústia da espera? Como se estabelece a ameaça da morte súbita? Esta metáfora é perfeita. A roleta russa foi uma maneira de ilustrar a angústia da espera.
Para mim, a imagem mais marcante da Guerra do Vietnam é aquela em que um homem encosta a arma na cabeça de outro e estoura seus miolos, espalhando sangue por todo o lado. Aquela imagem é um ícone da guerra e inspirou a cena.
Por não ter disparado contra a cabeça, Stevie é levado para a cela na água. Toda a sequência foi rodada às margens do Rio Kwai, na Tailândia, perto da fronteira da Birmânia. O Rio Kwai foi a melhor opção pois tinha a largura adequada e uma curva perfeita para localização da cabana. A pesar da aparência plácida, o rio é traiçoeiro, com correnteza forte, água bem fria e repleto de cobras e outros animais. Tínhamos uma equipe médica de plantão para qualquer eventualidade (principalmente mordidas de cobras) pois a região era remota, bem acima da locação utilizada por David Lean em A Ponte do Rio Kwai (1957).
Esta era uma típica cabana tailandêsa: rústica e leve, sem nenhuma estrutura mais pesada. Todo o cenário da cabana estava apoiado numa plataforma flutuante submersa para que pudesse acompanhar o rítmo da maré, que chegava a variar em 4 metros no mesmo dia. Desse modo, podíamos posicionar a camera bem ao nível da água.
Michael (De Niro) sussurra seu plano de fuga para Chris (Walken), que já se encontra psicológicamente abalado, com extrema dificuldade de concentração em meio aos gritos de Stevie na jaula, dos vietcongues acima e, principalmente, pelo barulho dos disparos e dos "cliks" do revólver. Michael tenta manter-se firme e focado enquanto a atenção de Nick está comprometida pela tensão do ambiente.A iluminação daquele cárcere, com muita sombra e água na altura do peito, foi complicada, mas tinha um papel importante na ambientação da cena. Para captar as sombras em contraste com o dia claro do lado de fora, a iluminação deveria ser toda indireta, para que o reflexo da luz na superfície da água não brilhasse muito, clareando todo o cenário e passasse a idéia do ambiente inóspito do rio. Alguma luz direta foi direcionada aos rostos, mas suavemente, para atingir o efeito da luz natural.
Agora, Michael e Nick disputam o jogo. O revólver é girado para decidir quem vai primeiro. Mais uma vez, lembrei-me de David Lean, que afirmava que "o detalhismo sobre os objetos de cena, são essenciais na composição do espaço". Por isso, a cenografia foi totalmente composta por objetos reais, coletados na região. Inclusive o revólver.
Depois, passamos para uma tomada aberta, que tem como propósito básico, situar o espaço e posicionar a visão do espectador sobre os personagens em relação ao ambiente. Do ponto de vista narrativo, esta é uma informação valiosa. Mais ainda numa área pequena. Se você prioriza tomadas fechadas, você limita a percepção do espectador sobre o ambiente, dificultando assim, sua interação com o drama.A preparação dos atores foi toda voltada para colocá-los no estado máximo da tensão que precede o combate. Pedi a De Niro, Chris (Walken) e John (Savage), que não tirassem seus figurinos enquanto estivéssemos na Tailândia, nem mesmo durante o sono. Também pedi que não tomassem banho, pois seria impossível para os maquiadores, reproduzir a aparência dos prisioneiros que passaram tanto tempo naquelas condições extremas. Imagine o fedor dos três depois de alguns dias.
Nenhum dos tailandêses que atuaram como Vietcongues eram atores e isso trouxe alguns problemas. Inicialmente, eles relutaram para agredir alguém em cena. Principalmente no rosto pois a cabeça é considerada sagrada na Tailândia. Para piorar, a violência encenada foi real, os tapas tinham que ser dados com força para se obter o efeito desejado. Para os plácidos tailandêses, cruzar a fronteira para o ódio assassino foi um grande sacrifício. Mas o resultado foi excelente. À certa altura, podia-se ver a intensidade em seus rostos. Eles realmente entraram no clima e nós os respeitamos muito por isso. Toda vez que eles tinham que estapear alguém, nós cortávamos para eles pudessem fazer uma oração de perdão.
Para dirigir bem os atores, é preciso conquistar sua confiança, e para isso, eles precisam ter a certeza de que você dá a devida importância ao seu trabalho. A expressão facial de um soldado em combate, demonstra seu grau de intensidade. Isso não é interpretação, é assimilação da realidade. Bob, Chris e John são atores que entendem isso.
Tiroteios são terríveis, rápidos e confusos. A sequência da roleta russa tem seu próprio rítmo, mas quando Michael começa a disparar contra o inimigo dando início à matança, o rítmo é outro, com muitas tomadas rápidas e detalhadas que passam uma sensação de movimento, dando mais impacto à violência. Mostrar alguém atirando para todos os lados enquanto seus alvos vão caindo, não é o bastante. É preciso trabalhar os detalhes, como a expressão de surpresa em um rosto baleado ou a de ira daquele que castiga sem piedade. Estes detalhes fazem uma grande diferença.
Após o frenesi do massacre, Michael e Nick resgatam Stevie da jaula na água e agarrados a um tronco, flutuam para longe daquele horror. A tensão os acompanha, pois o trio não faz idéia do que vem a seguir e as sequelas da traumática experiência começam a se manifestar.
A sequência da roleta russa gerou uma grande controvérsia após o lançamento do filme nos cinemas. Algo extremamente difícil para o povo americano digerir. Muitos a consideram como uma metáfora da Guerra do Vietnam. Além disso, alega-se que aproximadamente, 25 pessoas morreram jogando roleta russa após assistirem ao filme.
Em larga escala, o filme contempla as consequências morais e psicológicas da guerra e os efeitos do patriotismo políticamente-manipulado sobre os valores do indivíduo (como amizade, família e honra) e sua comunidade. Também aborda temas controversos como suicídio, distúrbio pós-traumático, infidelidade e desequilíbrio mental.Polêmica à parte, O Franco Atirador é sem dúvida, um clássico. Entre outros, venceu cinco Oscars - melhor filme, diretor, ator co-adjuvante (Christopher Walken), edição e som - e um Globo de Ouro de melhor direção para Cimino. Em 1996, foi selecionado para preservação no Registro Nacional de Cinema dos Estados Unidos pela Biblioteca do Congresso por sua significância cultural e histórica.
